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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(015)

Juliete agora quer dar uma volta na rua e a doida mimada sempre consegue aquilo que quer. Terminamos nosso sofisticado jantar romântico de um ótimo macarrão ao molho vermelho de salsichas, servido à francesa com solenidade debochada de minha parte, e acompanhado com um vinho tinto dos bons (Malbec, será? Sei lá, não entendo muito de vinhos, exceto que levam uva e álcool), que a garota se deu o trabalho de investir uns trinta barões.

Isso meio que atrapalha minhas intenções afrodisíacas, mas eu já fico satisfeito por ela não me pedir para mastigar estrume de vaca, coisa que, devido ao meu raciocínio fosco e sentimentalizado próximo a ela, seria difícil de negar. Sei que pareço um homem, examinando assim a olho nu, mas basta Juliete me cercar e pronto. Meu disfarce se desmancha todo e eu revelo o que verdadeiramente sou: um pudim de claras em neve dentro de uma calça de brim desbotada e gasta.

É um pouco engraçado. Enquanto eu caminho absorto nos meus pensamentos (ir pra cama com ela, ir pra cama com ela, ir pra cama com ela) com as mãos nos bolsos, Juliete, a herdeira soberana do principado localizado nos altos do bairro Moinhos de Vento observa com curiosidade circense os aldeões da rua da República. O motim da zona boêmia da cidade mal nos deixa ouvir os ruídos dos nossos próprios tênis pisando lentamente no chão pegajoso de cerveja quente, derramada pelos copos descartáveis cambaleantes.

Ela não parece muito acostumada ao vaivém andrógino típico da região. Jovens de preto com seus cabelos espetados, indecisos entre o gótico dos 80’ e o punk dos 70’, com seus pingentes indígenas cravados na periferia dos lábios ou nas sobrancelhas ou em lugares que Juliete não ousa imaginar. Os artistas perseguidos por suas bolhas mágicas de fumaça dando o tchan intelectual. Gente bêbada querendo ir embora sem se lembrar onde estacionou a porra do carro. Gays e lésbicas segurando alto suas placas indicativas de gays e lésbicas, sentados nas cadeiras bloqueando a passagem, tendo assuntos estridentes com pessoas que ainda não tomaram uma posição definitiva quanto ao que fazer com seus órgãos sexuais.

E mais montes de outros tipos subterrâneos emergindo por todas as direções: roadies do Black Sabbath, putas, táxis vermelho-caqui, coletes fosforescentes ensinando a manobrar, óculos/cabelos de John Lennon, playboys, camisetas de banda, junkies, futuros físicos nucleares, top models decaídas, jaquetas de couro falso, figuras solitárias, jazzistas com suas cartolas de feltro, patricinhas em fila nos guichês dos bares da moda, mendigos sósias do James Brown escafandrando nas lixeiras artigos de plástico para suas coleções. Pessoas que, ao amanhecer, retornarão sem muita esperança e com as mesmas crenças para suas tocas, endereçadas nas páginas amareladas de Charles Bukowski. Eu sentiria nojo de tudo isso, se eu não fosse, à minha maneira, um deles. A única diferença, talvez, é que eu sei muito bem onde quero enfiar meu pau essa noite. Quero voltar.

Eu posso estar enganado – e quando o assunto são automóveis eu me engano com frequencia alarmante – mas acho que esta camionete verde-garrafa metálica já passou por nós umas três vezes, antes de seus quatro rodões soltarem o vocal sibilante ao encostar repentinamente. Um almofadinha salta do carro.

– Juliete! Que surpresa encontrar você por aqui!

O tal parece estar empolgado por vê-la. Não é adorável quando acontecem coincidências desse tipo? Juliete está bamba, pálida e com uma feição cadavérica no rosto. Quem é esse camarada?

– Ah. Oi. Oi, amor – diz Juliete. Suas pupilas estão rodando feito bolitas de chumbo numa roleta de cassino.

Ela sai com essa e vai em direção ao cara, e aí se posiciona ao lado dele, toda hesitante, com os cabelos escondendo o rubor nas bochechas. É o namorado de Juliete, e é um grande prazer conhecê-lo. Quilos de gel capilar. Metros e metros de ombros. Um queixo afiado. Um jacarezinho simpático estampado na camisa pólo horizontalmente listada, mais ou menos na região do mamilo esquerdo. Sapatos reluzentes, relógio cheio de arengas metálicas, nenhum sinal de barba no rosto, cheiro de loção. Um partidão.

– Quem é esse? – ele pergunta me olhando firmemente nos olhos. Acho que o namorado de Juliete gostou de mim. Quem sabe ele me convida para um ménage à trois e salva minha noite.
– “Esse” é Santiago – eu mesmo me apresento, mas ele dá um gelo na minha mão, que fica uns segundos flutuando no meio do caminho.

O negócio dele agora é com Juliete.

– O que você tá fazendo aqui? – ele quer saber, nervoso.
– O que você tá fazendo aqui? – ela rebate, como quem já sabe que ele passa suas noites de sexta na região.
– Entra no carro.
– Não estou muito a fim – ela teima.

Eu mudo de ideia. Acho que não quero mais fazer sexo. Se o chão se abrir e eu me sujar todo de magma, por mim já está bom.

– Vou dizer mais uma vez, talvez você não tenha entendido. Entra no carro.
– Você não é meu pai.

Fica na tua, Santiago. Isso não é da sua conta.

– Então é isso que você faz no seu tempo livre, fica vagueando por aí?
– Que direito você tem?
– Sou seu namorado, cacete.
– Só agora você se deu conta disso?

Boa, garota! Fica na tua, Santiago. Isso não é da sua conta. Bem que podia passar o tio do algodão-doce.

– Entra no carro, sua puta!
– Puta é sua mãe! E você não é meu dono.

Gente, olha o fiasco. Os góticos/punks de cabelo espetados, unhas pintadas e rímel nas pálpebras estão olhando pra nós. Fica na tua, Santiago. Isso não é da sua conta.

– Você está dificultando as coisas pra você, Juliete – ele segura o braço fino dela, com virulência.
– Me solta, seu babaca! Tá me machucando. O que você vai fazer? Me bater no meio da rua?
– Claro que não. Você sabe que sou paciente. Eu espero até chegarmos em casa. Você já sabe de cor do que eu sou capaz – falou o machão perfumado, de unhas feitas e com as sobrancelhas delineadas, todo David Beckham.

Fica na tua, Santiago. Isso não é da sua conta. Isso não é da sua conta. Isso não é da sua conta.

– O que você quer, ir embora com esse daí? É isso? – ele a interroga.

Opa! Eu ouvi direito? Acabo de ser envolvido. Eu acho que agora isso é da minha conta. Posso dar meu depoimento?

– É uma boa ideia, cara – eu digo com uma calma lúcida.
– O quê?
– Ela ir embora comigo. Como você sugeriu.
– Você está tirando uma onda comigo, bróder? – ele pergunta inocentemente, com as mãos no meu colarinho. Ele adora segurar coisas, isso eu já notei.
– Solta ele, Maurício! – aos berros, Juliete.

Maurício é o nome dele. Que propício! É como um cirurgião plástico se chamar, sei lá, “João Bustos”. Legal. Melhor que isso só se seu sobrenome for “Cretino”.

– Tudo bem, Juliete. Não precisa se preocupar. Estou confortável aqui – eu falo, na minha vez.
– Vamos ver se você fica engraçadinho depois de ter um dente quebrado, meu irmão!
– Posso escolher o dente?

Acho que antes ele só estava fazendo graça para a plateia, mas agora está realmente enfurecido feito um touro espanhol e eu fico orgulhoso por ter contribuído ativamente para sua cólera. Dificilmente eu desperto esse tipo de paixão nas pessoas. Mas ele não vai me bater. Se sim, já teria acertado o alvo antes. Covardes, sabe como é.

– Escuta, cara. Sai fora! Isso não é problema seu – diz o boboca, assumindo um tom mais conciliador. Fracote.

Não deixo de dar a ele a razão, isso não é da minha conta. Mas agora já estamos aqui.

– Rapaz, se você não vai me dar o soco, dá pra largar meu suéter? Assim você vai esgarçá-lo e, sabe como é, eu não tenho roupas sobrando, se você quiser saber.

Ele acerta meu nariz. Estou no chão, com a nuca chocada contra a raíz de um Jacarandá. Assim que o sangue começa a escorrer, um grupo de vegetarianos faz uma espécie de cordão de isolamento entre o babaca e eu. Quando abro os olhos, minha visão embaçada procura Juliete que desvia o olhar. Já dentro do veículo, o valentão neandertal reitera sua ordem, e Juliete sobe na camionete como um obediente poodle de madame. O que vocês estão olhando? Nunca viram uma cena clichê de duelo corporal por causa de uma donzela? Pensei que isso se dava o tempo todo. Ah, vocês são uns boêmios de uma figa. Circulando todo mundo, a zorra acabou, não há mais nada pra se ver aqui.

Agora, estou indo de volta pra casa, e minha adorável namorada deve estar lá me esperando agitada; e quando eu chegar, ela me perguntará toda atemorizada e zelosa o que foi que aconteceu. Depois, maternalmente, limpará o sangue coagulado na minha cara com uma gaze embebida em soro fisiológico, fará alguns curativos calmamente, vai me encher de beijinhos e fazer um sexo bem quentinho comigo. Opa. Não. Eu devo ter me confundido. Essa é a vida de outro rapaz, não minha. Eu não tenho ninguém.

E estou pouco ligando, na verdade. Muito cedo eu aprendi a perder. E me saí bem, eu acho. Tanto que talvez eu não saiba fazer outra coisa.