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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(024)

Entre nossos fregueses habituais há um velho. Não sei se você percebeu, esse senhor é a imagem do Christopher Plummer, só que mais baixo e mais gordo, se você puder conceber um sujeito assim. Toda vez pede “o de sempre” (expresso duplo e sanduíche de bacon, e a conta sempre dá onze dinheiros, e ele faz uma auditoria mesquinha toda santa vez). Aí acomoda seu estômago por cima da cinta usualmente na mesma mesa, a do Gustave Flaubert. Não sei se ele vem aqui por causa da comida, do ponto, ou o quê, ou porque está homeopaticamente lendo Madame Bovary, que pode ser um livro bem complexo para iniciantes – não tenho ideia se o velho é iniciante na literatura, mas como terráqueo, não há objeção, ele é um sênior nos pés-da-égua.

Esse velho não faz ideia, mas ele foi uma espécie de mentor do meu choque térmico do estoicismo para o sentimentalismo. Na minha cabeça, eu criei uma história mítica acerca dele, sem nenhum alicerce de fatos, e talvez dê num conto que terei vergonha de mostrar para qualquer editor ou pessoa humana alfabetizada. Ele, o conto literário que mentalmente venho escrevendo cada vez que o nosso “Mr. Plummer” entra aqui, tem dois finais alternativos, de modo que preciso da sua ajuda para escolher o pior.

Bem, por motivos óbvios ele é um homem que morrerá solitário e, por enquanto, tudo bem; qualquer um de nós, rico ou não, bonito ou não, popular e bem-relacionado ou não, morrerá louco e na solidão, sem lembrar do que almoçou. O que importa é que condição o trouxe até aqui, o iminente fim da sua vida patética e miserável e cheia de autopiedade. Ou a) como um poeta, entregou-se para uma bela garota dos anos 40, e a vadia o abandonou, o trocou por um outro cuja feição assemelhava-se mais ao Clark Gable, talvez; ou b) ele não deu chance ao amor, era um cara durão, e assim viveu toda sua vida, desprezando qualquer lastro com uma mulher, e teve uma existência promíscua, ambiciosa e selvagem, e cheia de fogos de artifício e chupadas de orgulhar os deuses gregos do vinho e do prazer. E então, qual a melhor opção de caminho até desembocar na amargura, na loucura e na solidão?

Não sei, e nem quero saber, eu acho. Eu devo admitir, embora sem muita vontade, arrasado, com pena de mim mesmo, brindando minhas falhas e negligências e inacabamentos como ser humano, que eu estou mais perto de assinalar a opção “A” nesse departamento, muito por falta de um terceiro viés mais convincente e sedutor. Vou sentir muita falta daquele cara pasmo e insensível, que escutava as músicas e não sentia absolutamente porra alguma, que não dava a mínima pra nada, que não levava em conta as expectativas de nenhuma garota da cidade e que, quando meio down, passava uma noite solitária e melancólica no Juno’s Pub, fitando o nada e deixando sua cerveja esquentar até o copo suar. E depois, botava os troços pra frente, não há de ser nada.

No entanto, esse cara, esse ex-eu, bem, ele morreu, se foi, fez-se pó, subiu no telhado ou evaporou feito gás, saiu nadando por um pântano e nunca mais voltou. E agora pareço um protagonista de John Fante. Eu não sei se eu era... se eu era... (como é aquela palavra bastante usada nos livros do Paulo Coelho?) se eu era feliz. Mas ao menos havia uma sensação de segurança. Já nessa nova etapa, é só Juliete aparecer para eu ter certeza imperial de querer passar o resto dos meus dias a seu lado (minha sorte é que, quando ela desaparece, a mesma certeza se dissipa).

Mas isso é porque, dá pra ver, quem está no controle é ela. Se eu pudesse comandar, saber quando a gente vai se ver, quando a gente vai dormir junto ou se falar através de torpedos de celular, bem, gostar dela não seria tão ruim. É isso, a porcaria da falta de controle que, de um modo ou outro, fará de mim aquele velho amanhã. Amor é para os fracos. Os fortes são aquelas pessoas rígidas feito pedra, que a gente vê morrendo completamente sozinhas.

***
Essa é a hora de você se perguntar sobre que conversa é essa de solidão, e o que houve com Francisca? Não houve nada. Quer dizer, ela foi até minha casa mais algumas vezes e passou meia-dúzia de noites lá. Mas é que... sei lá. A garota tem 19 anos e faz teatro, e você não tem ideia de como criaturas assim se comportam depois de um orgasmo. Quando ela não está narrando histórias que ninguém quer saber, ou está enrolando os cabelos do meu peito (coisa que, não sei por que, me dá falta de ar – talvez seja um bom tema para discutir no House), ou está fazendo caras e bocas teatrais, ou está mexendo no meu moedor de pimentas, ou está querendo dar voltas na rua ignorando totalmente que homens de 25 anos não dão voltas na rua depois de transar após a meia-noite. Fora que, na cama, ela me trata como um objeto (algo parecido com um trampolim). Adeus, garota, na boa, não vamos fazer disso um drama. Como diria James Taylor naquela canção que ficou famosa na voz da Carole King: não é bom saber que você tem um amigo? Convenhamos, vai ser melhor.

Sinto que chegou a hora de me mover ao próximo passo, e isso é meio torturante como se minhas pernas tivessem afetadas por uma elefantíase. Mas é isso, como não estou planejando morrer perdido no vácuo, banhado em melancolia, vazio e abandono, como aquele velho, eu preciso mexer com meus gravetos, sacudir minha poeira, explorar meu horizonte, fazer uso de todo potencial da minha lista telefônica até esfolar, fazer acontecer, carpe diem e toda essa baboseira.

Passou da hora de procurar aquela garota do supermercado, a Desirée ou Danúbia, não lembro. Mas antes eu preciso bolar um jeito de descobrir a pronúncia correta do nome. Será que se eu for a algum cartório e passar-lhes a descrição completa (cerca de um metro e setenta, olhos azul-piscina, cabelo repicado até os ombros, feições agradáveis embora não sugerindo que ela trabalhe como miss, pele cândida, corpo legal e sorriso fácil), eles levantariam a ficha? Talvez esse pessoal não faça esse tipo de trabalho. Deixa assim, eu me viro bem sozinho. Quer dizer, eu me viro sozinho.