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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(027 e 1/3)

Roger quer me ver. O grande Roger Birk. Por incrível que pareça, a última vez que o encontrei foi há uns cinco anos, mais ou menos, nos arredores do Temple Bar, o famoso point boêmio de Dublin, lá do outro lado do mundo, uma coincidência sem tamanho. Mas acabamos não alongando a conversa, pois quando saímos do Brasil (ele foi viajar de mochila e eu fui limpar mijo europeu em troca de miséria) estávamos rompidos e brigados, motivo esse que não me lembro muito bem. Quer dizer, recordo de uma festa numa casa de bairro e uma garota qualquer.

Eu estava a fim dela, o nome era Camila Alguma Coisa, e um papo sintonizado estava rolando no meio da festa. Ela até estava tocando meu braço. Era batata, ia dar lance na certa. Aí fui buscar mais uma cerveja e demorei a encontrar o dono da festa, que estava com a chave do freezer, controlando o álcool para não acabar logo e todo mundo cair fora. O cara tinha um medo do cão de fracassar como anfitrião. Quando voltei não vi mais a garota. Fui achar ela quando precisei mijar. Ela estava no lavabo da garagem, a vadia. Espremida na parede, com a saia na cintura, de costas para o Roger, o filho-da-puta garanhão. Foi brabo. Como quando eu tinha onze anos e minha bola de futebol caía no pátio do vizinho, um velho mau e assustador, bastante conhecido em Pelotas.

Acontece que esse meu ex-amigo de longa data andou topando com o Marcus e perguntou por mim, e aí o Marcus se achou no direito de passar meu telefone aos tubarões. Para recomeço, Roger veio me apanhar em casa para um drinque em nome dos velhos tempos. Quando a gente se vê, eu estendo a mão de forma solene, quero que ele perceba que minha cena é um grande gesto de reconciliação. Que eu não esqueci, mas que também todo aquele drama não tem mais importância. Não somos mais jovens estúpidos, agora somos adultos estúpidos. Ademais, eu ando meio desesperado por pessoas à minha volta. Tenho passado tempo demais em casa, sozinho, sem brilho, desocupado, numa pequena crise, sem conseguir escrever nada, nada que preste pelo menos.

Vamos ao Eddie’s Bar na rua Independência, e cada um pede uma dose de Jack Daniels e uma lata de Coca bem gelada. Por conta do Roger, é claro. Afinal, foi ele quem comeu minha garota naquela porcaria de banheiro daquela festa cretina. Eu acho que ele me deve uma bem grande, você não acha?

– Não olha agora, mas acabaram de entrar duas gatinhas – diz ele, com aquele jeito pegajoso de vocalista de banda.

Roger se acha um Julian Casablancas genérico, e até chegou a cantar num conjunto idiota chamado Traqueostomia, que arrasou com “Tric-Tric”, uma bela canção de merda, e só durou seis meses e dois shows, muito porque eles “só queriam garantir uns trocados pra bebida e arrastar umas pequenas quentinhas para o quarto”, como eles diziam no microfone antes do primeiro acorde. Nunca me surpreendeu eles andarem sempre bêbados e sem vestígio de garotas por perto.

O lugar é de mesas pequenas encostadas na parede, para cada duas pessoas que precisam se sentar frente-a-frente, de modo que estou de costas para as tais garotas, e não estou nem um pouco interessado, para ser sincero. Aliás, nem sei o que estou fazendo aqui, com esse cara. O que eu posso ouvir é que o teor do colóquio feminino é denso e lamentoso. Parece que uma das pequenas – a de lá, de frente para o Roger – se meteu com um cara que é noivo de alguém que não é exatamente ela, no entanto dá pra ver que está cheia de esperança, a coitada. Decidido a conhecer as meninas e confiante no seu charme arrogante, Roger se levanta para uma abordagem que tem tudo pra dar errado.

– Olá! Fiquei cinco minutos decidindo se eu perguntava as horas, ou se vocês tem um isqueiro. Como eu tenho relógio, não fumo e queria mesmo é conhecer vocês, resolvi perguntar se podemos puxar umas cadeiras e sentar com vocês.
– Mas você é bem cara-de-pau mesmo! – diz uma delas, aquela do cara noivo, toda zangada. – Não está vendo que estamos tendo uma conversa séria?
– Ótimo! – contra-ataca Roger, enquanto não sei onde enfiar minha cara. E eu nem sei se elas valem a pena, não tenho olho na nuca. Ele segue dizendo: – Eu sou um cara inteligente, com domínio sobre os mais variados assuntos, e se hoje em dia ser simpático significa ser cara-de-pau, então sou cara-de-pau. Podemos sentar?

A garota de costas para mim ri timidamente. A colega frustrada dá um grito.

– Não!

Roger volta para a mesa e me dirige um sorriso de cara lavada de quem não vai desistir. Ó, céus. Não demora o garçom traz uma garrafa de cerveja à mesa das garotas, quando é atracado pelo rapaz abusado.

– Com licença, senhor garçom. Mas eu vou ficar com esta Antarctica. Obrigado.
– Ei! Essa cerveja fomos nós quem pedimos! Qual é a sua? – alguém berra lá da outra mesa.
– Você não pode beber, vai terminar a noite me levando pra casa, no meu carro. E vocês não estavam no meio de papo sério? Segue aí. Saúde!
– Babaca! – bufa ela.

Mesmo possuída de raiva, a neurótica pede outra e abstrai. O cara noivo é seu abacaxi principal. Então ela se volta para a amiga, pedindo conselhos sobre como domar o cafajeste enrolão, ao passo que nós dois comentamos sobre besteira qualquer. De repente, Roger se manifesta eloquente e chamando toda a atenção do lugar, outra vez com impertinência:

– Tá na cara que ele não gosta de você, viu? Só você não se dá conta – e estica o olhar para a mesa detrás.
– Alguém te chamou na conversa? Ô, praga!
– Desculpe, não está mais aqui quem falou... – ele se fecha no nosso papo e dá um gole substancial na cerveja.
– Agora fala, porque ele não gosta de mim? – a ingênua morde a isca. – Senta aqui.
– Quem não quer agora sou eu – diz Roger.

Sinto vergonha da nossa pequena perturbação pública, mas até que é engraçado. A garota enrolada se levanta e arrasta sua cadeira até nossa mesa repentinamente. E aí encara seu carrasco de sexta-feira à noite.

– Por que você acha que ele não gosta de mim? Hein?
– Garçom?! – Roger faz cena. – Socorro, tem uma maluca carente e psicopata sentada na minha mesa – diz, e aí baixa o tom dirigindo-se à maluca carente e psicopata. – É falta de educação deixar uma amiga sozinha, sabia?
– Cala a boca. Me diz, por que ele não gosta de mim, na sua opinião?
– Volta para o seu lugar. Sua amiga pode sentar com nós, se quiser. Você não. Sai daqui.
– Porra! – berra ela, com paciência quase zero. – Por que você acha que ele não gosta de mim? Anda, fala!

O camarada olha pra mim como que indagando o que eu acho disso, dou de ombros, e ele se prepara pra dizer alguma coisa, todo insolente.

– Primeiro acalme-se. Não sou sua mãe, que deve ser a única a suportar seus rugidos. Fora que eu tive um dia difícil, meu papagaio está com amigdalite. Segundo, que é simples: enquanto você esperneava para a coitada da sua amiga, que aliás não para de bocejar ouvindo seu “super problema”, eu percebi pelo jeito que você coloca o cabelo atrás da orelha que você é uma garota meiga e instigante, coisa que um malandrinho de beco de rua não reconhece numa garota. Logo, eu poderia te dizer que não merece ser enganada por este cara. Mas eu não vou dizer isso, porque se você se meteu com alguém comprometido foi porque quis e eu sei que você é super inteligente e deve ter sido bem amamentada na infância. Então para de chorar a morte da bezerra. Ele não está a fim de você! Vá até o banheiro, retoque o rímel e joga essa sua neurose ridícula descarga abaixo.

Alguns segundos desconcertados de quietude, aversão e perplexidade no ar. Posso ouvir a traqueia da garota deglutindo o conselho rude. Roger é um péssimo terapeuta de araque.

– Você é sempre grosso e estúpido e babaca assim?
– O tempo todo. Mas me acentua se vejo uma garota de brilho fértil como você, com esse charme meio desengonçado dentro de um corpo supersexy, e que fica apertando o lóbulo da orelha quando está irritada, se dando para um idiota.

Eu tinha me esquecido o quanto esse Roger é mestre mesmo. Por um momento tendo a achar que um cara com tanta lábia não apenas tem direito de comer as pequenas que seus melhores amigos estão interessados, como merece. Na boa.

– Hum... – a doida amansa e apenas grunhe, cheia de sentimentos confusos, visivelmente caindo na laia do meu cupincha. Quem não conhece Roger, compra. Ela continua: – Fala mais...

Pronto, caiu.

– Vamos recomeçar, agora com o pé direito. Muito prazer, eu sou o Roger. – Ele aponta para mim. – E esse é meu amigo Santiago.
– Santiago Ventura – me apresento eu mesmo. – E, por favor, nos perdoe.
– Oi. Eu sou a Larissa. E ela é a Juliete.

Juliete. Santiago. Nomes bastante comuns na cidade, não é mesmo? Sinto a garota atrás de mim se mexendo. Alguém toca meu braço. Eu me viro, é ela mesma. Sou eu mesmo. Somos nós, os coadjuvantes. Um buraco negro e ventoso se abre no meu peito. Os olhos dela quase explodem e as pupilas por pouco não saem quicando pelo assoalho gordurento do bar. Não pode ser. Mas é.

– Putz, quem diria? – eu lanço a pergunta retórica.
– O quê? – Roger se mete, querendo saber.
– Não posso acreditar – diz Juliete.
– Vocês se conhecem? – pergunta Larissa, intercalando a observação nas feições envolvidas.
– Não! – se defende Juliete.
– Sim – digo, a olhando fixamente.
– Ele é um amigo meu – ela tenta se explicar.
– Sou mais que um amigo dela.
– Cala a boca, Santiago! – Agora é a nossa vez de discutir.
– Quem sabe a gente troca de mesa? – sugere Roger, num tom casamenteiro, tentando redesenhar as acomodações dentro do bar.

Eu me sento no lugar de Larissa e Larissa toma o meu lugar. Os dois falam sobre relacionamentos, o lobo Roger se faz de cordeiro e banca o compreensivo, enchendo a garota neurótica e carente de perguntas, mas eu sei que ele só quer se dar bem noite adentro. Eles pedem mais uma bem gelada. Taciturno e quase rindo, dou uma olhadela no cardápio e pergunto se Juliete é chegada em calabresa com cebolas. Ela me dá os ombros, alheia, fazendo questão de emanar suas ondas radioativas de desprezo e sua mágoa por a gente ter dormido junto e eu não ter rastejado até ela no dia seguinte. Eu peço uma pizza. Enquanto os dois tagarelam e parecem se dar bem logo ao lado, ficamos em silêncio, buscando assuntos e explicações. Juliete esfrega o braço esquerdo com a mão direita cruzando seus belos peitos num decote comedido, meio que com frio. Eu ofereço meu casaco, ela desdenha, diz que não precisa e olha para os lados, nem aí.

– Você vai me levar pra casa? Digo, se os dois ali se acertarem? – pergunto a ela.
– Não sei – responde Juliete, seca.

Eu sei que vai.

continua...