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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(034)

Em casa tudo melhora. Não há aqueles pequenos círculos de pessoas pesarosas com diferentes níveis de desespero com o que aconteceu. Não há pêsames. Não há defunto. E fora alguns aforismos bíblicos por parte do namorado da minha mãe, não há pessoas inclinando a cabeça e dizendo porcarias de que agora respeitam mais a existência diante da morte – bobagem, criaturas morrem todos os dias, aos montes e das mais variadas maneiras, e as coisas continuam na mesma. A morte não muda nada e nem ninguém, a não ser que seja você o sujeito em questão: bom, aí você vai notar uma sensível diferença na sua rotina.

Nas muitas vezes em que visualizei este momento, quero dizer, essa conjuntura bizarra de família, meus simulacros eram muito mais aterrorizantes. Minha mãe, eu e nossas brigas, a patricinha Juliete finalmente como minha “namorada” (ela não está nem perto disso, eu sei, mas eles não precisam saber, certo?) jantando na casa dos pobres, o Rubens, namorado tosco da minha mãe contando alguma história fajuta com a cara cheia de maionese. Certo, digamos que não seja um ideal de família, talvez por isso nenhuma marca de comida industrializada quis nos filmar esta noite. Mas ninguém está com cara de apavorado. Estamos todos em volta de uma travessa de comida – a especialidade da minha mãe, um bacalhau desfiado e cheio de batatas, ovos, azeitonas e óleo de oliva –, e eu estou fazendo piadas idiotas, muito por estar nervoso, e os outros estão com uma cara de quem passou mal da barriga o dia todo, um pouco distantes. Dá pra ver que o óbito realmente significa algo para eles. É algo pesado, triste, permanente, mesmo que nenhum deles sinta falta da vítima em voga, e nem sequer se recorde disso tudo na próxima segunda-feira.

Eles passam o prato de salada verde uns para os outros e me entreolham severos, como se eu estivesse apenas negando o luto, e que até o final do jantar eu vou cair na real e chorar até pedir ar, com a testa no meio da comida. Esperem sentados. Eu deveria estar triste, sei, alguma área cognitiva dentro de mim está agora emitindo sinais claros de que eu talvez não seja humano. Mas estou nem aí. Se aquele cara é meu pai ou deixa de ser, ou se ele levantasse daquele caixão no meio do último dolorido adeus, minha reação seria a mesma: a vida ou a morte daquele sujeito é irrelevante. Se ele fosse meu pai, haveria porta-retratos com ele sorrindo por aqui, ou eu teria ficado oitocentas vezes mais agitado por retornar a essa casa com o talento que tenho para ser fracassado – o único, aliás. E mais, meu antigo quarto não estaria intacto como está, ainda com aquela moldura de Moby Dick na parede, a cama de solteiro arrumada e a coleção de miniaturas de carrinhos clássicos na estante; mas estaria todo remodelado e travestido numa academia de ginástica que meu pai não saberia direito em que porta fica e minha mãe só entraria pra tirar o pó.

Não há vestígios dele aqui, nem nas minhas lembranças. A única prova crível era aquele pedaço fantasmagórico de carne esfriando com algodões nas narinas. Eu me recuso a aceitar isso. Não tenho culpa de ele ter ido embora e organizado famílias sobressalentes por aí. E a culpa por ele ter morrido também não é minha, ele devia ter pensado nisso antes de se entupir de aguardente e gordura bovina (não sei se foi isso mesmo que acabou com aquele indivíduo, mas qual parte do “eu não me importo” você não entendeu?).

***
Nesse tipo de reunião, essas apresentações e cruzamentos de entes pelos quais você cultiva algum afeto, só o que me vem à cabeça é o constrangimento. Mas minha mãe é paciente com Juliete e Juliete é meio acanhada e contida, mas educada com minha velha e sua comida sebosa e seu sofá com cheiro de gatos. Dá pra ver que elas já não disputam o mesmo espaço e não têm as mesmas funcionalidades, e que minha mãe acha bom Juliete existir pra evitar que eu caia de boca nas escadas da minha vida na capital, enquanto ela está impotente, no outro extremo do mapa.

Já ouvi alguns pais falando de como é artificial um pai enterrar um filho, mas também nenhum pai – mãe e padastro, no caso – deveria testemunhar a miséria e infelicidade de seus filhos. Então, na verdade, a garota é uma espécie de barômetro: pelo jeito que o velho Rubens a olha todo salivoso, dá pra ver que se eu estivesse indo mal, um tipo daqueles não estaria me acompanhando até essa cidade morna e cheia de placas indicando para que lado fica a rota de fuga que Judas usou após aquela ceia famosa. Foi boa a ideia da garota de fugir comigo, embora eu tenha enfatizado entre 500 e mil vezes que ela estava fazendo bobagem, e não lidando com as desgraças de sua vida média. No entanto foi providencial, eu acho, para ela e para mim, pois com ela eu fico satisfeito. E eu nunca fico satisfeito com nada. Ao menos não aquela satisfação que te deixa querendo mais, cheio de curiosidade: as satisfações que sinto com outras pessoas normalmente são sempre regurgitantes, do tipo “se você me der mais uma colherada é provável que eu vomite nessa sua cara”. E mesmo sabendo que as nossas chances são praticamente nulas, eu gostaria de entender por que a gente ainda se procura.

***
E após um festival de amenidades regadas a um café digestivo pós-refeição em família, Juliete exala esgotamento pelas vias aéreas, e logo minha mãe a pega pela mão a fim de mostrar onde estamos prestes a dormir. Surpreendentemente juntos, aliás. Talvez, não porque minha velha deixou de ser moralista e ciumenta, mas porque ela meio que se liga que não tenho mais doze anos, e a casa não é muito grande e cheia de possíveis dormitórios de toda forma, o que não ajuda muito o seu fascismo infanto-sexual. Vamos ficar no mesmo quarto, nos meus aposentos de criança, e pressinto que uma caminha dura e modorrenta me espera no chão. Mas ok, eu posso assistir Juliete dormindo se eu quiser, e eu sempre quero. Já é alguma coisa.

Escovo meus dentes e quando chego lá:

– Você escreve muito bem, mesmo – ela diz, perdida em uns papeis que estavam guardados num envelope, dentro das minhas coisas.
– Quem mandou você mexer nas minhas coisas? – Odeio quando leem minhas coisas. Fico puto quando mexem nos meus troços sem consentimento. Vou catando página por página das mãos dela, hostilmente.
– Você devia publicar isso, Santiago. Na boa, não sou muito de leitura, mas sei discernir o que é bom de ler e o que não é.
– Ah, cala a boca. Você não tinha o direito.
– Eu sei. Me desculpe. É que estava meio pra fora da sua mochila e eu me interesso por qualquer coisa que tenha a ver contigo.
– Isso lá é motivo? É como se eu fosse mexer nos seus, sei lá, nos seus absorventes. – Eu podia ter formulado algo melhor.
– Eu não ligaria. Eu sei que você sabe que eu não ligaria. Sou uma mulher, já. Não dá pra ver?
– Baseado em suas atitudes? Não.
– Só deu pra ler uns dois parágrafos! Pra quê tanto drama?
– Não gosto de leiam as coisas que escrevo. E pronto!
– Pois deveria. São muito boas.
– Olha, quando eu estava duvidando da sua maturidade, não estava falando de absorventes e sua capacidade de menstruar. Me referia à sua vocação para fugir dos problemas.

Breve silêncio. Ela sente que vai levar uma bronca, então se põe de pé, mas aí se senta de novo quando percebe que não tem mais por onde escapar. Ela já chegou ao fim do mundo.

– Você é quem não tem o direito de me dizer como devo lidar e resolver meus pepinos.
– Tenho sim, quando seus pepinos são enfiados no meu cu!
– Olha a língua!
– Estou no meu quarto e falo o que eu quiser.
– Grosso.
– Vocês dois vão fechar essas matracas ou eu vou ter que ir até aí? – Esta é minha mãe, pessoal. Fazendo com que eu me sinta um moleque traquina desde 1987. Ó, céus.

Tentamos dormir. Eu não consigo, ela também não, talvez por motivos distintos. Ela está numa cama ruim de um quarto estranho numa cidade desconhecida. E eu quero transar e não sei como começar. Quer dizer, eu sei como, teoricamente: dou um beijo, aliso os cabelos para trás das orelhinhas, enfio a mão dentro do sutiã, sussurro umas frases de filme, blá-blá-blá, mas não se trata disso. Não sei se ela também quer, depois de todo aquele lance anterior que culminou na tipicamente feminina expressão “grosso”.

Você já entrou numa birra dessas? Digo, você está num quarto escuro com uma pessoa com a qual já trocou fluidos algumas vezes, ou seja, isso não pode ser chamado de uma grande novidade; no entanto, não é como se houvesse um compromisso e as relações sexuais fossem algo meio que uma exigência convencional, sabe? A informalidade do nosso vínculo deixa um limiar de incerteza sobre se as coisas devem rolar ou não. Entende?

Deixa eu explicar de uma maneira mais simples, então: você encontra na rua uma amiga que não via há tempos e ela está grávida. Sem sombras de dúvida. Não meio grávida, sua barriga está quase explodindo as tripas na sua cara, ela está com um calombo gigante e assombroso logo abaixo de uns peitos redondos e enormes que você tem certeza de que não estavam lá antes. Você não precisa que uma ecografia dê positivo para dar-lhe as merecidas congratulações. Mas não o faz, porém. Porque há uma pequena e racional parte de você dizendo que há um ou dois por cento de chances de ela apenas estar gorda por ter comido um hipopótamo inteiro no último ano, e você pode dar com os burros na água e ficar com a cara toda vermelha. Já te aconteceu? Pois é, por isso estou relutante em ir pra cima de Juliete na cama alta. Apesar das chances de me dar bem sejam reais, prováveis até, pode ser que ela apenas esteja gorda, ou com dores de cabeça horríveis, ou tenha perdido o tesão por mim, ou simplesmente não me ame mais – se é que algum dia ela se sentiu assim.

– Ei, Baby Julie...
– O que é, Santiago?
– Você está dormindo?
– Profundamente – ela diz, cômica e ressentida.

Acabei por interromper o solo vocal de um grilo vindo de uma fresta na parede de madeira. O quarto está escuro, o abajur desligado, a casa toda silenciosa, de vez em quando dando uns estalos assustadores. Mas eu estou mesmo a fim de fazer sexo. Um pouco, pelo menos. Não precisa ser nada muito intenso ou requintado.

– Eu posso subir aí contigo?
– Suponho que você não queira só ficar agarradinho...
– Não.
– Que idiota insensível. Qual o seu problema? Seu pai acaba de bater as botas e tudo o que você pensa é em transar?
– Mas é claro – eu digo. – Por isso mesmo. Hoje eu vi a morte de perto, estou dando mais valor à vida, ganhei novas perspectivas, e acho que quando se está sozinho num quarto com uma garota, não importa, aconteça o que acontecer, você deve esquecer as roupas e comer ela. Ou tentar, pelo menos. Bem, é o que estou me prontificando a fazer.
– Bom, agora me sinto convencida. Pode vir, gostosão!
– Sério?
– É claro que não, seu cretino. Tente ser mais romântico da próxima vez.
– Droga. Eu só queria, sei lá, comemorar que estamos vivos e com saúde.
– E depois você diz que não está afetado. Essa sua reação é típica de quem foi criado somente pela mãe e agora vive tentando satisfazer as mulheres com manifestações deturpadas de carinho.
– Sessão terapêutica a uma hora dessas, Dra. Juliete?
– Vai dormir, Santiago. – Ela ajeita o travesseiro e se vira pra lá.

Porcaria. Agora compreendo quando usam aquele ditado diante dessas análises conceituais fast-food, de que um charuto na boca é só um charuto na boca, e não uma manifestação de repressão inconsciente. E mesmo se for, quem se importa? Eu só queria fazer desse dia um dia verdadeiramente inesquecível.