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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(047)

Alguns dias depois da festa trágica que eu nunca deveria ter topado ir, Larissa – aquela amiga do peito de Juliete – vem buscar as coisas dela sem me dar muita trela e maiores satisfações. Enquanto cruzo meus braços rente à porta e a observo, ela fica distribuindo retalhos e bugigangas entre as várias malas que Juliete foi trazendo uma por uma. De vez em quando ela balança a cabeça e murmura alguma desmoralização indiretamente relacionada a mim, embora não me dirija nem um vinco de seu olhar indignado.

– Então. Como ela está? – mesmo arriscado a levar uns sopapos de umas unhas com esmalte, acabo perguntando.
– Chateada, é claro. O que você esperava? – a garota-intermediária me responde a jato, me fuzilando.
– E o que ela disse?
– Nada.
– Não me passou nenhum recado?
– Não. A Juliete não é muito de se abrir, você deve saber...
– É. Eu sei.
– Afinal de contas, o que você fez? Deu uma de idiota, não foi?

Não digo nada a ela. O que iria adiantar falar pela milésima vez “Não é o que você está pensando!”? Mas a amiga insiste.

– Hein, cara. O que aconteceu naquela festa?

*
[Perto de 1h38]
Juliete empurra uma porta entreaberta de um dos seiscentos quartos escadas acima. Entra dando passos cautelosos, e primeiro ela sente um fedor de vômito e solvente, e aí vê copos plásticos, garrafas de Amstel Pulse, bitucas de cigarro atirados pelo carpete e uma televisão quase muda exibindo um concerto do Pearl Jam – Eddie vocifera “Jeremy”. Ao levantar as sobrancelhas, me pega com uma garota sem blusa e estirada no meu colo com as pernas por cima das minhas, cobrindo o rosto com as mãos. O nome dela é Lara, ela tem uns dezessete anos, é loira e está bêbada ou chapada, ou ambas condições. Mas Juliete não está nada interessada em saber quem é, ou se ela deu um tapinha ou injetou um galão de heroína. Ela simplesmente sai correndo, sem escutar a parte em que uso um clichê que explicaria a cena.

*
Olhando assim, a coisa parece o que não é, eu admito. Não é que eu nem tenha tentado persegui-la, mas aquela menina estava mentalmente surtada e me impediu de deixá-la sozinha. Ficou berrando “Não, por favor, não me deixa aqui sozinha, por favor, fica aqui comigo!” e me puxando pelas lapelas. Sem ação, fiquei. Ainda deu pra ouvir os pneus do carro da minha – agora ex-namorada – silvando numa arrancada furiosa, e então eu pensei comigo: “Porcaria!”

Não conto nada para Larissa para não ter de me dar o trabalho de elaborar uma defesa. É uma causa perdida. É óbvio que dei uma de idiota, a minha especialidade. Mas não da maneira como ela pensa. Foi uma idiotice movida não por via de uma mente diabólica, mas por ingenuidade. Caí numa cilada que armei para mim mesmo, no momento em que decidi sair de casa, muito antes de abrirem as portas daquela droga de festa.

*
[Pouco antes, uns trinta e três minutos, mais ou menos]
Um cara me diz:

– Sai do quarto, garoto!
– Eu estou procurando uma pessoa – me justifico por estar plantado ali.
– E você tá vendo ela aqui? – um outro cretino me lança a pergunta.

Olho em volta. Não, não estou. Só vejo gente dançando, se amassando ou fumando erva pelos bastidores da festa, outros de pé com cervejas numa mão e a outra no bolso, um cara com uma câmera prateada e pequeninha de tirar fotos, o som alto da televisão vulgarmente gigantesca sintonizada num show de rock, abafando risos esquizofrênicos da sala. Três caras estão amontoados sobre uma garota, consigo identificar pela sapatilha dependurada no pé caindo pra fora do sofá caro. A panturrilha parece enviesada e pêndula, como se ela estivesse desmaiada.

– Eu já mandei você sair do quarto, garoto! Não tem nada pra você aqui.
– Ei, cara. Essa menina está acordada?

Eles me jogam pra fora do recinto e dão três voltas na fechadura.


*
É o que dá você querer dar uma de herói. A amiga de Juliete quer saber se tem mais alguma coisa, enquanto senta a bundona no topo da última mala, que está abarrotada de coisas e não parece que vai fechar. Dou a ela uma mão, que agradece politicamente. Eu faço careta puxando o zíper e recomendo que dê uma conferida no banheiro.

– Deve ter sido algo bem punk, sabe... – diz Larissa vasculhando as gavetinhas no organizador abaixo da pia. – Porque ela me pareceu bem triste com seja lá o que você aprontou na quinta-feira.

Dou de ombros.

*
No corredor, bato na porta louca e violentamente. Passa gente nervosa por trás das minhas costas. Casalzinhos de uma noite. Jogadores de pólo aquático. Filhinhos da mãe. Não me sinto bem. Lá embaixo a galera grita, apaga e acende luzes, finge dançar e fica trocando de música, até achar algo dançante e da moda. Lá dentro ninguém me dá bola. Tento invadir, mas só consigo machucar meu antebraço. “Ei, porra, larguem a menina! Não tem nenhum homem de verdade aí para impedir isso?!” Ninguém me ouve. Peço ajuda a um passante, digo que estão abusando de uma criança lá dentro, mas ele me lança um esgar descrente como se eu fosse doente, e logo desce as escadas procurando mais Smirnoff. “Otário!” berro na nuca idiota dele.

*
– Olha, Larissa. Não me leve a mal, mas se eu tenho que explicar alguma coisa é para Juliete. Se ela deixar, é claro.
– Era o que eu ia dizer. A Ju deixou bem claro que não quer te ver nunca mais. Por isso que eu estou pegando os trecos dela. E só eu sei o quanto pra ela é difícil pedir um favor desses a alguém. Minha amiga está realmente puta contigo. Fala aí, que besteira você fez? – a garota faz uma tentativa derradeira.

E não tira nenhuma informação de mim.

*
Alguém resolve sair, e na deixa eu pulo pra dentro. Tem roupas rosadas pelo assoalho e uma calça de brim mal dobrada no braço do sofá. O quarto segue escuro e cheira a hormônios. Todos vão saindo fora, encarrilhados num trenzinho humano que quase me atropela, todos atrás de mais bebida, fumo e confusão. O babaca-mor me dá uma ombrada intimidante:

– Deu, garoto. Já terminamos o que estávamos fazendo. Foi mal, não tinha lugar pra mais um. Mas você vai poder assistir na internet depois. Ela é toda sua, trouxa.

Só não apunhalei o nariz daquele cretino porque eu ia tomar uma surra coletiva no minuto seguinte e sairia daquela farra muito pior do que entrei, com uma hemorragia ou algo assim encobrindo meu mau humor. Mas estava endiabrado de raiva, enjoado do estômago, incrédulo na humanidade, essa raça rastejante, egoísta, obscena e transbordando caprichos.

Quando o quarto esvazia como a descarga de um vaso sanitário público sendo disparada, posso ver a garota abandonada no sofá, desmazelada embaixo da manta que originalmente decorava o sofá. Após esconder um dos peitos miúdos que estava exposto, a chamo e cutuco a menina, que abre os olhos narcóticos por dois segundos, dá duas voltas no ambiente com as pupilas letárgicas e apaga outra vez.


*
Tudo pronto, já na calçada, surge uma trégua no espírito aborrível de Larissa, que deixa escapar um conselho ou uma recomendação ou uma pista, não sei, do que eu deveria fazer:

– Olha, desculpa falar assim, mas não acho você adequado pra ela. Aliás, sendo honesta, eu nem gosto de você. Mas isso não importa. Ela gosta, não entendo bem como, mas gosta. E eu nunca tinha visto minha amiga tão feliz quanto nessas últimas semanas. Do jeito dela, claro, mas feliz. Mesmo você sendo assim, tão pé-no-saco. E eu não posso pensar em nada que tenha mudado na vida que ela já tinha, a não ser você. Aí você deu uma de idiota e ela fugiu, paciência, ninguém acerta tudo. Mas se você não for atrás, vai dar uma de idiota pela segunda vez.

E então ela me dá um tchau sem muita cerimônia, assim que termino de encaixar toda a bagagem na traseira de um Chevrolet espaçoso e bacanudo. Ela mesma abaixa o capô e se despede civilizadamente de mim. Pela sua cara, enquadrada na janela do carro vinho rosnando pronto pra partir, eu não vou ver Juliete de novo. Espero o automóvel vencer a esquina e volto para o meu quarto vazio como há tempos não via. Ele parecia tão pequeno poucos dias atrás.