Páginas

» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(031 e 1/3)

Vamos, então, abrir parênteses para o que foi que aconteceu pouco antes de eu deixar Marcela. Eu e minha mochila estávamos quase prontos para ir, quando uma torrente desaba céu abaixo. Troco a placa que sinaliza o expediente do Sta. Gemma Café com o lado FECHADO para a rua e dou duas voltas na chave, confiro a maçaneta, olho pra fora com cara de tédio. Fico protelando à meia-luz, sentado com os pés sobre o balcão e mastigando uma torta de chocolate com nozes, que ia para o lixo no próximo turno de qualquer jeito.

Minutos depois, suponho ter visto o carro de Juliete do outro lado da rua, um Renault quase zero, esportivo e branco, de vidros fumê, do qual o nome me escapa. Aquele lá tem vidros escuros, também foi feito para passeios e, se eu não sou nenhum daltônico, é definitivamente branco. Mas não há vestígio da garota ao redor, decerto fora apenas uma impressão, uma paranoia ou uma vontade subentendida de vê-la outra vez. Como será que vai você, Juliete? A última vez que a vi, ou melhor, ouvi, foi numa composição do Neil Diamond que tocou num piano bar, quando Marcela e eu solenizávamos nossa primeira semana de namoro.

(Segundo o jurássico músico americano, Juliete vai bem. Neil estava mesmo precisando da moça, esperando por ela, e parece também que ele andou embrulhado em todos os sonhos do dia, mas como devaneios não iriam encher a noite, ele encontrou Juliete. E agora ambos estão felizes e nananana nanana nana. Ótimo para ele, para os dois, eu acho. Bom, ao menos é o que diz a letra na canção homônima, talvez na realidade nua e crua ela esteja igualmente enrolando o velho compositor, como fez comigo, e Neil Diamond não sabe bulhufas ainda. Será que ele está a par que o namorado troglodita de Juliete distribui socos por aí? Não sei, não quero saber, isso não é da minha conta. Não encane, Neil, não há mal que uma Marcela não cure.)

E quando vou medir a chuva novamente, dou um grito que põe em xeque minha virilidade: quem diria, Juliete está pra lá da porta, as mãos espalmadas contra o vidro escorrendo água, toda encharcada. Com gestos ela questiona a maçaneta, querendo entrar – como nos filmes de terror, geralmente quando você está relaxado e distraído, é o momento certo para levar uma facada e começar a esguichar sangue. Abro a porta e alcanço uma toalha mesa, é o que eu tenho de supetão para ela se secar. Assim como o rum persegue o alcoolista tentando parar de beber, o erro persegue o transviado que se encaminhou.

– Fiquei sabendo do seu namorico com uma moça do Bom Fim – ela diz, remexendo sem parar a colher no chocolate quente que botei na frente dela, com pretexto de espantar a friaca.
– Você só está me testando, não sabe de nada.
– Eu teria dito olhando você nos olhos, se estivesse te pescando, seu otário.

Bem pensado. E a verdade é que ela não me encara desde que conseguiu entrar, essa noite.

– Bom, o que vou te dizer? Parece que existem garotas descompromissadas na cidade e que sabem dizer sim.
– Deixa, eu sei que você não me esqueceu – ela diz. E aí lambe a colher, hermeticamente.
– Como eu poderia? – pergunto retoricamente. – Falando nisso, e o animal do seu namorado? Como se chama, Maurício, não é? Mau-Mau para a galerinha dele, decerto.
– Olha, ele deve estar bem, até onde fico sabendo. Como namorado ele não está se saindo muito bem, se isso deixa você feliz.
– Não, isso não me deixa feliz. O que me deixaria feliz seria... – calo minha boca e fico examinando ela, cheio de pesar.

Não sei o que me deixaria feliz. Marcela me deixa feliz, eu acho. Sei lá, quando Juliete não está rondando minha cafeteria ou sendo cantada por Neil Diamond nos lugares aonde vou. Não sei nada sobre felicidade, pra ser sincero. Um banho de mar com Juliete me faria feliz. Um cafuné na cabeça dela. Fazê-la rir com alguma piada sobre a rivalidade de filósofos gregos e alemães. Mais uma noite de êxtase calmo e discreto na minha cama, com ela. Uma nova rodada de macarrão com salsichas e vinho importado. Tem também um filme passando no cinema sobre mulheres chinesas que seguram as pontas enquanto seus maridos partem para a guerra, que me faria um bem danado assistir na companhia dela. Sei lá, há montes de coisas que me deixariam feliz e todas elas têm a ver com Juliete, embora nenhuma delas esteja tragicamente associada à tristeza e à falência conjugal dessa garota maledicente. Mas eu não sei direito o que eu posso fazer a respeito, e nem se ela quer que eu faça alguma coisa.

– Ai, ai, Baby Julie... Vai ficar tudo bem, pode apostar – digo a ela, com o timbre consolador.
– Vá se foder! – ela me devolve. – Guarde sua pena pra você mesmo, um dia você vai precisar.
– Uau! – digo, demonstrando um ultraje teatral. – Jesus. Não sei por que tanta agressividade, eu só queria ajudar você.
– Cala a boca! – ela arremessa a xícara na minha direção, só que não acerta, apenas lambuza a parede atrás de mim e a camiseta estampando aquela língua dos Rolling Stones que eu ia usar pra voltar pra casa.

Quieto e tolerante, eu estico a mão num pano de prato e começo me limpando pelos cabelinhos do meu braço, todos melecados e cheirando queimado. Ela baixa o rosto e segura os miolos pela franja, como se a cabeça fosse rolar pelo assoalho, como uma bola de boliche. Eu estou balançando a minha, indicando que reprovo a violência, mas é melhor eu permanecer calado. Sei que agora vem aquela parte que Juliete começa a desabafar o porquê disso tudo. Garotas não sabem lidar muito bem com o silêncio. Na indiferença, elas sempre se entregam. Cuida só.

– Desculpa. Não sei o que me deu.
– Tudo bem.
– Não! Nada está bem! Você não merece isso. Você não merece a raiva que eu acabei de sentir. Você não merece o ódio que me dá quando lembro de você enquanto estou sozinha. Você não merece que eu leia O Retrato de Dorian Gray duas vezes na mesma vida, aquela merda de livro chato que eu só folheio antes do sono porque parece que você está deitado do meu lado, acariciando meu umbigo ou soprando alguma sacanagem na minha orelha. – (Pausa.) – Você não merece que eu te olhe desse jeito carinhoso que eu inventei de te olhar. Você não merece me atormentar só porque está agora com outra pessoa e não comigo. Você não merece que eu jogue fora uma nota de vinte numa coletânea do Tom Waits só porque você me disse que adora Tom Waits, aquele rouco idiota que até dois meses atrás era um desconhecido para mim. Você não merece que eu automaticamente adore todas coisas que você adora, só pra me sentir mais por dentro da sua vida, das suas coisas, de nós dois. – (Pausa.) – Você não merece todas as horas que eu gasto pensando em você ao invés de estudar todas aquelas bostas sem sentido que o Kafka escreveu e vão cair na prova amanhã, no primeiro período. Você não merece que eu imagine você no lugar do meu namorado quando ele está com aquele peso todo em cima de mim. Você não merece um pingo de lágrima que eu já irriguei de saudade das nossas conversas. – (Pausa. E soluço.) – Você não merece meu ímpeto de sempre voltar à essa cafeteria fedida. Você não merece representar tudo de bom que eu jamais vi em um outro ser humano, desde que minha mãe morreu. Você não merece me derreter como se tivesse a porra de um raio laser implantado na sua íris. – (Pausa. Tremelique no queixo.) – Você não merece ser a única pessoa em todo o planeta que sabe como me fazer sentir alguém admirável e especial no meio dessa aglomeração selvagem de gente histérica e egoísta por todo lado. – (Pausa. Lágrima. Raiva.) – Você não merece modificar toda a minha estrutura de vida apenas sendo isso que você é. Você não merece! Não merece! Não merece! – (Choro convulsivo e embaraçoso, escondendo o rosto nos braços entrelaçados chapados no balcão.)

Eu não sei se ela está me elogiando ou não, honestamente. Mas está chorando, e isso parece um indício de sinceridade da parte de Juliete. Pela primeira vez desde que a gente se conheceu isso não parece uma partida de pingue-pongue. Agora é diferente, ela acaba de despejar um monte de coisas novas e pingue! Não sei onde foi parar o meu pongue.

Santiago, velho-de-guerra, está em estado de choque, senhoras e senhores, nunca ninguém me disse um troço desses, talvez seja a única vez em toda a minha vida, muita gente não tem sequer a sorte de um momento como esse. Poderia adequadamente tocar, deixe-me ver, “Dust In The Wind”, isso se os caras que cuidam da sonoplastia da minha vida miserável não tivessem saído para tomar um café, justamente na cena que eu jamais me esquecerei.

Talvez eu possa editar o momento quando carregar essa lembrança até o túmulo, quem sabe eternizá-la numa apresentação de slides no meio do meu velório ou coisa assim, para todo mundo ver que valeu a pena eu ter existido, que se eu fosse essa pessoa tão desastrosa e insignificante e inábil em vários setores da minha vida, uma garota não se daria o trabalho de caminhar na chuva até aqui, só para me dizer essa porrada de coisas. Parece que alguma coisa eu andei fazendo bem.

– Eu posso pelo menos te dar uma carona? Eu acho que devo isso a você – ela diz, fungando e secando o rosto, ao constatar que está tudo desligado, eu estou limpo e com a mochila arrumada, a erguendo às costas.
– Não precisa. A chuva deu uma trégua. Eu fico melhor sozinho, quero dizer, sem você e suas ruínas e seus furacões por perto – eu digo, e emendo um sorriso polido.
– Está certo – diz Juliete. – Você tem razão. É melhor mesmo ficar longe de mim. Eu mesma faria isso, se pudesse. Aliás, tento fugir de mim o tempo todo, acho que é por isso que eu sempre venho parar nesta porcaria de lugar.
– Não me entenda mal – continuo. – Só estou tentando fazer o que eu acho melhor pra mim.
– Compreendo. Mesmo. Esquece tudo que eu disse, ok? E não me chame de “Baby Julie” nunca mais. Você sabe, se me encontrar por aí.
– Vou tentar. As duas coisas. Eu juro, vou me esforçar.

Certo. Bom, é isso. Tenho de ir andando, mas antes: silêncios constrangedores, jugulares engolindo salivas duras e áridas, olhares intrincados, lábios resignados e sorrisos made-in-Paraguay. Ela pega a bolsa, sai e chapa a porta de vidro com irascibilidade. Olha que coincidência bacana, aquele Renault parado do outro lado da rua era mesmo de Juliete, que agora está arrancando com urgência e precisão. Até breve, minha Baby Julie...

continua...