Desligo.
O telefone volta a tocar e eu estou com sangue nos olhos demais para antes conferir a origem.
– Eu já disse! Cem mil ou não falamos mais sobre isso. Na minha conta, até o fim do dia e o livro é seu, você pode atribuir ao nome de sua mãe, se quiser... – grito, apavorando alguns clientes do Sta. Gemma Café. Mas apavorado mesmo estou eu, não sabia que possuía todo esse poder de negociação. Vejo que assim eu podia estar na Bovespa ou operando fusões multinacionais, se quisesse. Hoje estou me sentindo o cara.
– Santi? Você está bem?
Putz. Ah, não.
– Não. Quer dizer, estou. Estava. Não estava falando com você – digo, à guisa de explicações.
– Ah, logo vi.
Ela fica um tempo muda e eu dou uma bufada supersônica, delatando minha má vontade de sempre.
– Estou saindo fora, daqui a duas semanas – ela diz.
– É, estou sabendo. Legal.
– Queria te ver antes de ir.
– Não – falo, curto e decidido.
– Eu queria te explicar umas coisas.
Boa tentativa. É a primeira menção a respeito de que coisas deveriam ser explicadas por parte dela. Não respondo nada. Não sei se quero ter as coisas explicadas ou não, que porra iria adiantar, de toda maneira? Ela só quer sair por cima. Eu quero apenas que ela saia.
– Deixa pra lá, você não precisa me explicar nada.
– Mas eu só queria...
– Não.
– Mas você nem...
– Não, Juliete.
Ela interrompe a ligação na minha cara querendo parecer dramática, mas a garota tem um desses telefones móveis tecnológicos onde só se encontra um botão, e que você precisa deslizar o dedo sobre a tela como um pintor para encerrar a ligação, igual faziam em Minority Report. Então o efeito não é o mesmo e não tem tanta graça.
Não quero mais vê-la, de jeito nenhum, nem fazendo pole dance pelada num mastro de ouro maciço ao som de “Careless Whisper” (mesmo que a ideia acontecendo na imaginação seja quase irresistível de tão tentadora). No duro. Não estou fazendo como das outras vezes, sabendo que vou quebrar a medida restritiva que criei para mim mesmo há cinco minutos.
Juliete e eu temos boas histórias para contar, embora ouvindo assim você não ficará com os braços arrepiados como nós ficamos naqueles encontros tensos. Você pode não entender nada, porque escutando a descrição dos bons momentos, não é possível sentir o cheiro doce de suor, a pele fria, a ternura dos carinhos, a loucura do sexo, as melodias que enviei para ela achando que ela, talvez, deveria escutar e quem sabe sentir a mesma coisa que eu estava sentindo ao ouvir tais canções.
É provável que um dia ela negue que tudo isso aconteceu, negue que foi bom ter acontecido, negue que foi importante, negue que algo mudou dentro da gente, daqui para o resto de nossos dias, a perder de vista. Mas estou lembrando de tudo isso agora, e que sei ela também está, aonde estiver. Mas não importa mais. Algumas pessoas apenas não nascem para ficar juntas, digo juntas-juntas, embora seus encontros físicos sejam bem românticos e inesquecíveis. Vai ver é isso que querem dizer quando dizem que tudo isso é um jogo. Se você foi derrotado, não faz sentido ficar depois assistindo as reprises dos melhores momentos. Só tope jogar se souber perder. E eu perdi. Nós perdemos. Para nós mesmos, ou seja, perdemos para quem a gente é.
***
O telefone não para. Só pode ser ela de novo. Arrependida. Ou talvez há algum palavrão direcionado a mim que Juliete esqueceu de usar. Palhaço ou cretino ou bobalhão, qualquer um desses – ou todos de uma vez – são perfeitamente aplicáveis à minha pessoa.Não é.
– Olha só, me diga o que você acha... – É aquele vigarista outra vez. – Vinte mil no bolso. É o que posso fazer.
– Não. Noventa mil e negócio fechado – contraproponho.
– Puxa vida, garoto. Você não está entendendo. Vinte mil e uma participação nas vendas. Uns 2%, mais ou menos. E aí?
– Oitenta mil e cinco por cento ou mande seu cliente botar aquela cabeça aristocrata para funcionar. Ou nada.
– Te procuro novamente, até o fim do dia.
Desligamos. Mas sem exaltações dessa vez. Com o sentimento mútuo de que podemos nos acertar, talvez. Acho que vocês estão entendendo e vão entender melhor quando eu contar o seguinte: essa agência de má-fé está me tentando a assinar um contrato de inconfidência, para que eu ceda tudo o que trabalhei duro por anos escrevendo para um, como eu disse, Dr. Escritor Famoso Decadente, que foi uma sensação nos anos 1980, mas há quinze anos não consegue produzir porra alguma com a própria originalidade.
Não é pra menos. Recordo de ter tentado encarar sua obra mais prestigiada, só que o autor me perdeu logo nas primeiras páginas, quando ficou umas trezentas linhas falando sobre um abajur (ou era sobre um vidro de pepino em conserva, não me lembro bem). Bom, como minha estória, que também não é nenhum palmeiral de criatividade, veio a calhar – por falar de bloqueios inventivos e esses troços –, o melhor que ele pode querer desse final de carreira lamentável é me aporrinhar para que eu venda meus créditos e o libere para assinar Juliete Nunca Mais (sim, foi como batizei a versão final, depois que consegui encaixar essa personagem atraente, linda e incompreensível no meio). Negócios, negócios.
***
– Vamos lá, me ver não vai arrancar nenhum pedaço – diz Juliete. Deixo a maluca dizer algo, como prêmio pela enésima tentativa de falar comigo.Como se ainda houvesse algum pedaço para arrancar. Penso em dizer, mas não digo, não vou dar margens para interpretações de que estou sentindo qualquer resquício de autopiedade. Embora seja verdade, não vem ao caso.
– O que de tão urgente temos a dizer que não possa ser adiado?
– Sei que você está chateado e tudo. Mas tenha um pouco de consideração.
Consideração é uma palavra nova no nosso relacionamento. Explodo uma risada na cara dela, através do aparelho. Ela também não se aguenta e começa a rir de si mesma.
***
Aceito a última proposta e embolso um bom dinheiro. Meu romance não me pertence mais, e o sentimento é de ter vendido minha alma ao diabo. Certo, me sinto meio culpado, mas não dá pra voltar atrás. Como dizem, a vida é curta. E o dinheiro só não compra aquilo que ninguém está interessado em comprar. Eles tinham a quantia, eu possuía algo que eles estavam querendo muito, então não foi muito complicado chegarmos a um acordo satisfatório para ambas as partes. Foi um prazer filho-da-puta negociar contigo, sr. Schmelzer.Entre ganhar o equivalente a uma lata de milho por cada livro vendido pelo ignóbil “Santiago Ventura” e poder faturar uma grana boa para viajar ou dar entrada num apartamento, eu preferi o caminho mais fácil, a oportunidade que estava logo à mão, ali na esquina – ser uma espécie de barriga de aluguel do mercado de literatura, ou, como usam nos jargões editoriais, sou um ghostwriter bem-sucedido. E já está de bom tamanho, visto que eles até já estão acenando com um novo contrato para o ano que vem. Parece que há uma onda de literatura erótica pegando, e eles acham que têm alguma coisa para mim, que faz bem o meu tipo. Não sei se foi um elogio ou não, mas, se for verdade, vou poder largar aquela porcaria de café.
O mal da nossa geração é se achar muito especial, pensar que de um jeito ou de outro dá para ser alguém, como se um gênio saísse detrás de cada lata chutada na rua. Essa coisa de acordar todo dia torcendo para levantar da cama com o pé direito estava me cansando. É idiotice ficar esperando sua vida entrar na época de ouro, quando essa época talvez já esteja em andamento e só você não vê. Pode não ser tão dourada quanto você sonhou, e nem sequer prateada quanto prometia ser, com talvez um pouco mais de berço, sorte, esperteza ou empenho. Só que uma vida bronzeada não é tão ruim assim, é? Você quer ser o número um? Então se apresse, porque a fila é quilométrica, e às vezes a catraca emperra. Seja bem-vindo à Decepçolândia.
continua...