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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(021)

Segundo especialistas metidos à besta, o café mais saboroso do mundo é expressamente saído das fezes de um bicho parecido com um gato. Nunca experimentei, então não seria coerente opinar sobre o aroma e o sabor, no entanto, comprovadamente Kopi Luwak é o mais sofisticado e caro tipo de café. O processo digestivo de fabricação soa simples, mas não é: o bichinho adora alimentar-se dos grãos, só que não consegue digeri-los, de modo que as sementes são evacuadas após sofrer mutações proteicas direto nas mãos dos produtores que colhem, selecionam, lapidam e, enfim, trabalham para que o cocô apresente-se como café. E o que isso tem a ver?

Tem a ver que eu acho que, se você está necessitado de beber a porra de um café, não precisa chegar a tanto e nem desembolsar muito. Há uma esquina em cada cafeteria, e com cinco reais você aniquila sua vontade com louvor. Contudo, se ainda assim, por obstinação ou capricho, você quiser viajar à Indonésia atrás do Kopi Luwak, tudo bem, vá em frente. O que isso tem a ver? O que isso tem a ver? O que isso tem a ver?

Juliete é meu delicioso e aromático café de cocô de gato. Pronto, é isso. E se eu quiser satisfazer meus interesses românticos de merda, eu preciso nadar contra minhas fantasias e a favor das minhas verosimilhanças, competir na minha liga, e não ficar sentado esperando o cocô terminar sua viagem intestinal e tornar-se o café dos sonhos.

Começo pelo início. Eu havia desistido e doado meus ingressos para Joel e Marta soprarem suas fagulhas de um retorno, talvez o que eles precisem mesmo é sair da rotina um pouco. Como na minha carteira de identidade diz que eu sou egoísta, os quis de volta e Joe me repassou sem protestar muito. Além de sexo, tudo indica que Marta também não é fã das artes cênicas.

***
A peça de teatro é fácil de suportar. O brabo são os bastidores. Logo ao avistar Francisca, meu sofrimento triunfa sobre meu afã: ela está linda e tecendo sua malha social antes de desmontar a maquiagem cênica, rodeada de gente esquisita e famosa que ninguém conhece – atores, fotógrafos, escritores, publicitários, diretores, pintores, humoristas e toda essa gente artista. Eles basicamente têm a mesma ideia que eu: oferecem os lábios para uns beijinhos, a parabenizam, forçam entusiasmo e dizem que estava tudo fantástico, do figurino à acústica. Ela agradece a todos, desfere algumas amabilidades e, ao me ver puxando uns ombros e tentando vencer o furdunço até chegar lá, explode numa intrigante paixão viva e vem na minha direção, cheia de abraços embaraçosos.

Constatando que vim sozinho (por razões elementares eu não trouxe nenhuma namorada, talvez seja por isso que eu esteja aqui), a bela Francisca imediatamente me adota. Ela diz que sentiu saudades, dá a entender que pareço bem com minha formatação física e pergunta se eu lembro das noites que passávamos papeando no Bar dos Podres. Não lembro, eu não senti tanta saudade assim, e estou em paz com o espelho nesta noite rara, sei lá eu por quê. Os aspectos positivos são esses. Os negativos são inumeráveis – a garota me chama para uma esticada com ela e a trupe numa cantina italiana, e eu me sinto um peregrino atravessando o Saara, e que ficou para trás do bando.

Eles bebem demais, gesticulam demais, falam demais, discursam demais, alto demais, assuntos prolixos e obtusos demais e usam armações de óculos que destoam minha atenção, opinam sobre montes de coisas como se estivessem com diarreia, estupram sotaques estrangeiros que pegaram no exterior, e são atordoadamente chatos. É uma boa hora para testar aquela teoria maluca do Einstein sobre o relativismo: quanto mais vontade eu sinto de levar Francisca para minha casa, mais irritantes e monótonos me parece todo esse pessoal.

(Embora eu saiba que é uma exagerada injúria da minha parte, dá pra ver que são todos cativantes e envolventes, e que eu tenho muito a aprender com todos eles; mas tudo tem hora e isso não está bom.)

E quando todos decidem aos gritos e em comum acordo que atravessaremos a madrugada no Liverpool X-press, dou a chance de Francisca acenar com alguma ideia alternativa de fim de noite, retardando meu andar e ficando de propósito para trás do grupo, como um mamute exausto de uns mil anos nas costas. E é batata, como dizem. Ela me procura na calçada, retrocede alguns passos, enlaça o braço no meu como uma alteza e me pergunta se está tudo bem. E eu digo que, sabe como é, está tudo bem.

– Você não quer ir ao pub, é isso?
– Eu só precisava de cigarros.
– Mas você não está muito a fim, não é?
– Não sei.
– Porque, por mim, tudo bem – ela diz.
– Como?
– A gente pode ir para outro lugar. Quer dizer, se você quiser.
– Hum. É. Pode ser. Ando meio sem grana mesmo – eu falo (o Liverpool X-press cobra dez de entrada e cinco de couvert artístico para você assistir bandas de garagem e beber cerveja quente, e é mais um pub metido à londrino da América do Sul, cheio de capas clássicas dos Beatles pregadas na parede – grande áfrica).
– Eu sei como o pessoal pode ser meio blá, às vezes – diz Francisca.
– Não é isso, é que... – eu tento me justificar, mas ela não deixa.
– É que você quer passar um tempo sozinho comigo – ela afirma meio que perguntando, ou pergunta meio que afirmando, não sei.

Sei que ela é bem ligeira para uma garota de dezenove anos e é isso que eu gosto das garotas de dezenove anos de hoje em dia, diferentemente das representantes da faixa etária quando eu tinha os mesmos dezenove. Que alguém as levava para um quarto escuro naquela época não era difícil de imaginar, assim como era notório que esses alguéns não eram eu e meus amigos da mesma idade. Eram os caras de 25 anos, muito provavelmente, e eu me sinto como se pudesse agarrar com as unhas as voltas do universo e dar o troco na vida. Se tiver algum rapazola da idade dela consternado com o que pode acontecer entre nós, melhor pra mim.

Quero passar um tempo sozinho com Francisca, na casa dela ou na minha, preferencialmente na minha, não importa o quanto ela tenha bebido ou a hora que preciso acordar amanhã. Ela está feliz com a peça, está sem namorado, há farmácias abertas e eu sou um cara legal, aliás, um cara legal que divide com ninguém um apartamento minúsculo e confortável a cinco quadras daqui. Não é perfeito?

O resto do pessoal já parece longe demais para os recuperarmos, então especulamos um pouco para onde podemos ou devemos ir, ela ri um pouco, baixa a cabeça, a ergue de novo, depois pensa, olha para o lado, inclina o quadril, depois ri, e aí nossos olhares já insinuaram mais ou menos a proposta que ninguém teve coragem de sugerir, e não há mais nada a dizer de qualquer maneira. Ela é uma garota livre. Eu sou um rapaz livre. E embora a gente não deixe escapar o tempo todo, temos nossas frustrações sexuais e precisamos ser tocados de vez em quando. Então, num gesto brioso, eu ofereço meu casaco de flanela para que ela não sinta frio, aquieto as lapelas e dou um beijo promissor em Francisca, no meio da rua. Caminhamos lado a lado, com destino à porta de onde moro.

– Está tudo bem contigo? – é a minha vez de perguntar, lá pelas tantas.
– Está sim – ela diz.
– Ótimo.
– E com você?
– Sim – eu balanço a cabeça.
– Sabe, eu achava que você me detestava – ela diz, quando dobramos a esquina do restaurante Subway e minha casa está a uns mil passos de distância.
– Ah. Não. É que eu sou meio estranho, às vezes – digo a ela.
– Eu era apaixonada por você.

Ó, céus. Oxigênio. Eu preciso de oxigênio. Por que isso agora? Logo agora.

– Você nunca me disse nada. – (Não estou me fazendo de doido, eu não sabia mesmo.)
– Sei lá. Quando você está a fim de alguém, você diz?

Boa pergunta. Não, não digo.

– Acho que sim – falo, sem muita confiança. – E isso quer dizer o quê?
– Nada. Garotas da minha idade se apaixonam todo dia, eu acho.
– Isso é reconfortante – digo, me fazendo de melindrado, mas não preciso fingir porque realmente estou. Só que isso tem um lado bom, se a paixoneta dela se perdeu na imensidão do anteontem, então quer dizer que podemos dormir juntos sem maiores contratempos.
– Não entenda mal. É que eu não perco muito tempo tentando interpretar uma pessoa. Se alguém por quem estou remotamente interessada é meio enigmático comigo, eu logo dou o fora. Se o homem for mais misterioso que eu, o que me sobra?
– Verdade – eu digo. – E você acha que estou sendo enigmático ou misterioso com você, digo, esta noite?
– Não. Acho que não. Você me ligou e foi direto ao ponto, assistiu minha peça – ela diz. – Talvez eu apenas tenha demorado um tempo pra sacar você, na época. Agora eu sei que é seu jeito, não é? Assim, meio lobo solitário.

Dou uma risada nitidamente audível do jeitinho dela de falar, e na sequência tento urrar de uma forma que dê a entender que estou uivando para a lua, só que na minha cabeça soou mais bacana e a noite de hoje não é de luar. Mas ela está certa, até.

– Olha, eu posso deixar você num táxi, se você quiser.
– Você quer me deixar num táxi? – ela me põe na parede.
– Não, não quero – digo, firme. E sei que essa é a reposta certa. – Eu quero passar a noite com você. Sem pânicos ou fricotes.
– Eu também.
– Você está sacando a coisa? – eu estendo o assunto. Mais do que deveria, provavelmente. – Só acho que devemos parar por aqui, se você achar que isso implicará em algum tipo de problema...
– Bem, eu não trouxe uma escova de dentes comigo, ou uma peça de roupa sobressalente, se é isso que está preocupando você – diz a garota.
– Não, não é. É mais ou menos sobre essa questão da... do...
– Aquele lance de eu ser apaixonada por você, antigamente – ela me interrompe.
– É, isso.
– Passado – ela diz. – Nada a ver, mais. Deixa isso pra lá, eu falo um monte de coisas, muitas delas sem pensar. Afinal de contas, quem é a mulher aqui?
– Espero que seja uma pergunta retórica – eu digo. – Caso contrário, se você realmente não sabe qual a função de cada um hoje, acho que não vou topar fazer o que estamos prestes a fazer.

Ela entende a piada e ri com uma gargalhada gostosa, que liga meu tesão e mostra que estamos na rota certa. E foi boa mesmo, minha sacada. E aí eu giro a chave e empurro a porta de ferro do prédio, e a gente sobe cambaleando até o segundo andar e não tem volta. Estamos prestes a dormir juntos, nossa primeira vez, minha primeira vez com uma garota que não é Juliete, desde que Juliete apareceu. E eu não consigo deixar de me sentir uma espécie de traidor idiota, mesmo consciente de que isso não faz sentido algum.