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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(050)

Fiz o que me mandaram fazer. Contrariando meus planos, fui dar uma volta na rua ao invés de ficar na minha poltrona apagando cigarros no braço com a luz azulada da tevê na minha cara, escutando barulhos de ambulância. Eu queria ver os amigos, olhar umas pequenas, ouvir música alta, falar bobagem, tomar uns copos de cerveja, a bebida preferida dos idiotas. E fiz tudo isso. Eu acho.

Lembro do Marcus, do Roger agarrado numa menina de cabelo verde sem idade para estar ali, de ter encontrado o Gregório e a Lily pela primeira vez depois que tiveram o bebê, e que eu fiquei de visitá-los um dia desses, mesmo sabendo que não vou sair de casa para ver criança nenhuma e ainda presenciar alguma briga dos dois, porque está tudo uma merda. Enfim, vi um montão de gente que não via há tempos, mas agora já não sei mesmo se estavam lá. É domingo, e eu acordei cedo, com gosto azedo de podre entre os dentes. Quando desço para buscar jornal e um frango assado, vejo o vômito seco escorrendo no muro da casa abandonada próxima à esquina, e então caio na real. Apesar da histeria e da felicidade etílica, ontem foi uma das noites mais hediondas de todos os tempos.

Nós ainda estávamos na terceira rodada, todos em volta da mesa do Malabar, botando os assuntos em dia e tirando sarro de uma faixa do Supertramp que algum desatualizado escolheu no Jukebox empoeirado perto dos banheiros. Até que um cara passou por mim, com um cabelo à escovinha familiar, mas que não consegui identificar de supetão. Quando então dois segundos depois avistei Juliete de relance bisbilhotando a bolsa, decerto atrás de seus cartões de crédito. Um terror cruzou meu rosto, eu havia entendido tudo. Ela levantou o queixo, esquivou a franja com um movimento cervical e deu de cara comigo, lá no fundo, rodeado de gente bacana. E aí baixou os olhos e seguiu o namorado.

Eu quase fui parar debaixo da minha cadeira. Não sei se era o chão tremendo ou se apenas minhas panturrilhas sofreram uma súbita deficiência de potássio. Minha cara esquentou e começou formigar. Alguém perguntou se eu havia enxergado algum fantasma, Marcus observou que talvez eu tivesse apenas mirado um espelho, pois quem estava pálido feito uma aparição do além era o Santiago aqui. Lembro vagamente que me dei o trabalho responder à chateação com um sorriso mecânico, e forcei a arcada desesperadamente para não chorar.

Era ele. O tal do cara que Juliete disse ter conhecido não era nenhum francês sebento que ela esbarrou na viagem, como havia sugerido na última conversa. O novo namorado era, na verdade, o velho namorado, como eu não pensei nisso antes? Era ele, o penteado estava diferente desde o ano passado, talvez a cara mais ossuda e a barba menos caprichosa, mas era ele sim, ninguém nunca esquece das feições de quem um dia o nocauteou. Eu ainda tenho vivos na memória cada traço daquele ruivo parrudo e prepotente que chutava minha bunda na quarta série do colégio Assis Brasil.

Os dois devem ter se encontrado em algum lugar requintado e da moda, como a porra do Outback ou algo assim, para comer alguma coisa e devolver alguns pertences um do outro. Ele deve ter encostado a garota na parede e ela acabou falando sobre mim, e aí ele disse que eu não passava de uma diversão para quem só estava frágil e entediada após milênios num relacionamento sério, que ele compreendia, isso de que às vezes sentimos tesão por outras pessoas, mas que a perdoava por esse erro chamado, como era mesmo o nome do coitado? E então Juliete respondeu que não queria mais falar sobre isso, repetir meu nome e evocar essas recordações ruins, e os dois acabaram unindo forças para largar uma rocha em cima do passado, e depois chorando e se abraçando e fazendo mil promessas hipócritas e mútuas de que ninguém mais iria interferir no amor deles, que não era perfeito porém era real, tudo que ambos tinham. E que eles já chegaram até aqui, atravessaram muitas coisas, por que não haveriam de superar esse episódio também? Aí o otário suplicou para que ela voltasse pra casa, e Juliete estava cansada demais para reagir e não aguentou a cara de pidonho do ex. E naquela noite os dois fizeram amor como fizeram no terceiro mês de encantamento, e Juliete não gozou, mas já ficou satisfeita de não lembrar de mim, porque o cara até que faz bem a coisa, mas muito diferente de como eu faço.

É claro que não tenho certeza absoluta de nada disso, mas não é muito de difícil de imaginar como as coisas transcorreram, é?

Que porcaria, isso. Eu assisti essa pessoa depilando as axilas debaixo do mesmo chuveiro. Eu vi essa pessoa de pijama. Eu tentei doutrinar essa pessoa a ler O lobo da estepe. Eu transei sem camisinha com essa pessoa e posso muito bem estar dando carona para alguma peste herpética agora. Eu aturei o seriado Grey's Anatomy sempre que essa pessoa chegava antes no controle-remoto. Eu rabisquei os azulejos com batom insinuando amar para sempre essa pessoa. Fui ao supermercado às onze da noite porque essa pessoa estava a fim de comer batatinhas sorridentes. Eu me preocupei com as provas semestrais dessa pessoa. Eu baixei da internet canções de quem não gosto, como as do Jack Johnson e Guns N’ Roses, para que essa pessoa pudesse correr no parque alegremente aos sábados. Eu esfreguei à mão as calcinhas sujas dessa pessoa. E agora essa pessoa simplesmente desfila na minha frente com outra pessoa.

Sei que depois disso enchi a cara, topei ir com alguém (acho que, obviamente, com o grande Roger Birk) até a Avenida Farrapos atrás de zoar algumas prostitutas e por fim apaguei, despertando todo defumado neste estimulante domingo de sol debochando da minha cara, sem a mínima perspectiva de trocar palavra com alguma alma-irmã antes do anoitecer.

Eu gostaria muito de agradecer a todos os incentivos para que eu saísse de casa e fosse ver gente. É verdadeiramente revigorante essa sensação de gastar metade do meu salário bebendo tudo o que pintar, gritar com os carros na rua, levar foras de patricinhas e ficar duzentos minutos tentando enfiar a chave na porra da fechadura de todos os prédios da cidade, exceto o meu. Esse masoquismo barato foi, nossa, muito legal. Se é isso que chamam de viver, sou mais de passar o resto dos meus dias afundado no meu sofá lambendo minhas feridas, me auto-erotizando e tirando James Cotton na minha harmônica, torcendo pelo retorno daquela época de ouro em que minha única preocupação era chegar na frente dos outros espermatozoides, já que não tenho triunfado em muitas competições desde lá.