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» Leitor novo? Recomendo iniciar pela 1ª temporada, capítulo (001).

(037)

Estou apaixonado, mas desta vez não por uma garota. Porém, por um livro – que até me fez esquecer toda essa encheção. Sirvo uma torta ganache de chocolate branco em uma mesa e pego o livro: alguém está voltando pra casa no vagão dos fumantes. Perto da janela um cliente ergue o braço por um chá de menta, levo gentilmente, e retorno ao mundo perfeito: Frank está morrendo de tédio com aquele emprego idiota dele; e por aí o dia corre. E eu estou grudado nas páginas como uma lombriga maníaca e faminta.

A obra-prima de capa mole e meio amarelada que está me desfibrilando foi escrita pelo Richard Yates, e foi nomeada aqui bagaceiramente de Foi Apenas Um Sonho, quando virou um filme com aquele casal de atores que fez também aquele clássico premiadíssimo em que um navio afunda. Mas o nome original é Revolutionary Road, ou algo como “Rua da Revolução”. Esse Yates escreve tão bem que me dá vontade de chorar enquanto sinto um conforto paralelo; porque, eu acho, se você não chega nem perto de traçar as linhas como faz esse cara, seu lugar é mesmo atrás de um balcão de uma cafeteria insignificante.

Estou tendo meus dias de Frank Wheeler e é isso que me amarra a um escritor. Incorporar, por algum tempo, seus personagens. Já tive meus dias de Arturo Bandini com essa coisa de querer publicar um grande romance geracional; já vivi na carcaça do jovem Werther perseguindo Juliete-Charlotte; também incorporei Sal Paradise aquela vez em que escapei até Dublin para trabalhar com esfregões e vasos sanitários; e todo dia é dia de ser um pouco Holden Caulfield, como confirma meu constante mau humor e meu pirronismo com a coitada da humanidade.

Mas aí:

– Olá, eu gostaria de falar com Santiago. Santiago Ventura – um homem diz do outro lado de um obscuro telefonema no meio da tarde. Ele tem uma proposta que pode me interessar, ao menos é o que ele diz.
– Obrigado, senhor. Não quero assinar nenhuma revista.
– Não sou vendedor de assinaturas.
– Ah, bom – grunho. – Também não estou interessado em trocar minha tevê a cabo, senhor.
– Errou outra vez, rapaz.
– Hum. Aparelhos para modelar o abdômen?
– Não.
– Uma promoção de geladeiras?
– Errado.
– Eu ganhei algum sorteio de programa de auditório?
– Está frio.
– Já sei. Deixa eu ver... – É difícil imaginar que tipo de televendas tomaria esse rumo na negociação. – Escuta, você pode me dizer logo qual é a sua?
– Meu nome é Hermes Schmelzer. Você não me conhece, mas eu conheço você.
– Você é matador profissional, por acaso?
– Ei, não!
– Desculpe, senhor. Mas é que faria todo o sentido. Então o que você quer?
– Recebi aqui no meu escritório uma prova do seu romance. Tenho uma proposta a te fazer.

Que porra é essa?

– Que porra é essa? Como assim? Do que você está falando? Como você conseguiu isso? – muitas perguntas.
– É confidencial. Segredo de mercado. Anote aí meu endereço e venha tomar um café comigo amanhã.

Se minha vida fosse um romance de Richard Yates, ou alguma trama policial de revista pulp, seríamos enrolados até o último capítulo, e todos os acontecimentos seguintes girariam sobre o eixo “Quem Roubou O Livro de Santiago Ventura?” Mas ninguém aqui no Sta. Gemma Café e no resto do mundo todo está interessado nisso, muito porque o vilão está muito na cara: aquela putinha desgraçada que está sempre se metendo onde não é chamada. Juliete é a abelha picando meu pescoço. O cocô de cachorro no meio da grama onde piso. O fusca azul 1968 ultrapassando o semáforo fechado e esmagando minhas pernas em plena faixa de segurança. Juliete é a goteira sobre minha cama. Que diabos essa garota!

É tudo culpa dela. Tudo. Minha ruína, minha amargura, minhas trapalhadas e todas as coisas boas que acontecem comigo de vez em quando. Acho que é por isso que eu odeio tanto tudo nesse mundo. Tenho experimentado cada pessoa, cada assunto e cada utensílio doméstico com fins de ver se consigo detestar algo com mais profundidade e com todas as minhas forças, para assim rebaixá-la ao segundo lugar na minha lista pessoal de coisas que me enervam. Tem um espremedor de alho que está há trinta e três semanas na segunda posição, mas que parece não ter a menor chance. Maldito foi o dia em que ela atravessou por aquela porta.

***
Ela tem exatamente vinte e nove pintinhas marrons divergindo com o branco encanecido de suas costas lisas, dos ombros à lombar. Quando Baby Julie dá uma folga e adormece de bruços, gosto de ficar revirando seu tronco e membros atrás dos defeitos reles da sua carne de menina-garota-mulher. Me encurvo sobre as viandas da sua pele e vou procurando futilidades como um perito especialista em feminilidades; de olhos, dedos, dentes afiados tatuando impressões e marcas de saliva, às vezes enfrentando alguns resmungos protestantes de quem está cansada e quer ser deixada em paz alguns minutos antes de vestir a saia e o sutiã, entrar no carro e ir pra casa viver sua vida pública.

A cama é um lugar democrático. Quando estamos na minha, nus e implorando aos deuses do orgasmo para sermos salvos, trepando ou rindo ou conversando – ou tudo isso ao mesmo tempo –, eu não me sinto um fracassado cheio de vergonha do meu emprego e do cubículo que é esse apartamento vazio. Não, quando eu a seguro forte por trás e sinto olor doce de seu dorso ou do pescoço, eu me sinto um grande homem, o mais próximo de ser um macho dominante que eu já me senti na vida. E Juliete se sente estranhamente acolhida e favorita de alguém. Porque, se eu posso usar toda essa potência para foder com ela de quatro, posso também usar a mesma força e artimanha para protegê-la de alguma coisa que a gente ainda não sabe o que é.

Por isso essa luta, esse vaivém, esse carteado, essa constante e circular recriação de um ambiente inóspito para o nosso amor acidental. Ela me provoca e está sempre me pentelhando para despertar meu lado áspero, firme e corpulento, que a faz perder o comando. Tudo que ela quer é me ver como homem, por pelo menos uma hora a cada sessão. Sentir que não é a manda-chuva, e figurativamente ser posta na vala comum das garotas que dão e não recebem o que procuram em troca, porque não sabem se estão o fazendo por amor, carência ou autoafirmação. Sei lá, estou apenas refletindo sobre isso sem nenhum dos ensinamentos filosóficos que ela deve receber como estudante do quinto semestre. Se tem alguma coisa a ver com os descuidos afetivos daquele pai escroto dela, não quero nem saber. O que importa é que sexo com garotas malucas e emocionalmente arrebentadas é sensacional.

Como era de se esperar, ela matou aula e deu uma passada aqui, como já virou hábito. Um hábito perigoso, adorável e inconsequente, preciso dizer. Nada muito diferente do normal, então, como era de se esperar num caso de violação de privacidade como esse, eu voei na sua direção com sangue nos olhos. Aí, depois de uma crise hipócrita e dissimulada, do tipo que-direito-você-tinha e parecida com uma asma, ela me convenceu que apenas fez aquilo que eu mesmo faria, se tivesse um pouco de dignidade, autoestima e coragem. Cinco minutos depois, ou nem tudo isso, como era de se esperar, e eu já estava com o maxilar enfiado no meio das pernas dela.

Um tempo depois:

– Tenho boas e más notícias – ela fala sem me encarar.
– Você quer que eu escolha? – eu sondo. – Bom, na verdade tanto faz, porque dificilmente uma notícia partindo de você é tão boa que possa suprimir as ruins. Todo o bem que você me faz está sempre soterrado por escombros e destruição.
– Deus, como você é exagerado e melodramático – Juliete me acusa. – Mas não são apenas uma boa e uma ruim, são duas de cada, uma meio que relacionada à outra.
– Complicado. Hum. Escolha um tema e me mande a boa.
– Ok – ela toma fôlego. – Meu namoro com o Maurício está suspenso até o fim do verão.

Grande áfrica.

– E a ruim é que você não estará aqui todo esse tempo de meditação nupcial, e sim vagando pela Europa – concluo sozinho.
– Isso aí. Acertou – diz Juliete, com um ar positivo e contente por eu não dar faniquitos a respeito disso. É que eu já sabia.
– E a outra boa?
– Eu realmente gosto de você – diz. – Sabe? Não só como amigo – continua, aos solavancos e engasgos.

Juliete não faz muito o tipo de garota que deixa escapar essas sentimentalidades de filme romântico. Eu acho que ela anda meio incentivada por aquela sessão cinematográfica que tivemos. Mas ela acaba dizendo também, ainda que meio rouca e bloqueada, que está apaixonada de verdade por mim, que “está assombrada porque acha que nunca tinha sentido algo tão forte por alguém antes”, com essas palavras. Não consigo segurar um sorriso.

– E como foi que você descobriu isso logo agora? – digo, terminando de limpar o riso da cara.
– Bom. Aí vem a outra má notícia – diz. E faz uma pausa dramática, enquanto algo queima e retumba no meu peito. – Porque eu saí com outro cara.

Meu sorriso derrete e minha cara se parte em um bilhão de pedacinhos.

– Digo, alguém além de você e o meu namorado. Bem, acho que você entendeu.

Deveria existir alguma lei na pauta do congresso proibindo alguém de dizer que está apaixonado por você e no minuto seguinte despejar que dormiu com outra pessoa. Está mais do que na hora do poder legislativo e desses políticos de bosta interferirem nos nossos diálogos amorosos, pois claramente estamos vencendo os limites.

Meu rosto está quente e minhas canelas estão geladas. Permaneço uns minutos cozinhando a boa-nova e o novo viés de caráter que a garota está me apresentando.

– Como... – quero perguntar, mas não sei o quê, e Juliete percebe, então logo começa com as justificativas.
– Sei lá, Santi. Eu estava mal. Confusa, perturbada, fora de mim. Sabe? Com esse negócio aí que eu disse, do que estou sentindo por você... – Ela não consegue repetir que está apaixonada por mim, como se a frase contivesse mensagens diabólicas ao ser lida de trás pra frente.
– E a solução foi trepar com outro? – grito.
– Não, não. Não fui pra cama com esse. A gente só se beijou.
– Puta que o pariu, Juliete!
– Calma, Santiago. Não foi nada. Eu precisava tirar a prova, entende? Saber se, de repente, eu apenas não estava enjoada do meu relacionamento e procurando uma distração. Mas agora eu sei, eu sei. Eu gosto mesmo de você! – ela consegue dizer, mas não ajuda nada. Então retoma: – Desculpa. Sei lá. Eu não sei onde estava com a cabeça.

Ah, tá bom. Elas sempre dizem isso. Aposto que antes de ser esfaqueada naquele banheiro de hotel, Nancy Spungen disse a Sid Vicious que não sabia onde estava com a cabeça. Jogo contigo que Brigitte Bardot dormia com um camisetão com a inscrição “Eu Não Sei Onde Estava Com A Cabeça”. Sério mesmo, então sou um asno a respeito do gênero feminino, se todas as letras de ódio consolador e romântico que o Billy Joel já compôs em toda sua autobiografia musical não são inspiradas em garotas que, supostamente, não sabiam onde estavam com a cabeça.

Não posso acreditar. Estou realmente puto com isso. Me sentindo devastado, estarrecido, enojado, tonto, inútil, imbecil. Achei mesmo que o que estava acontecendo aqui era um troço especial entre o universo e duas pessoas. Ok, três – corrigindo. Mas ainda assim, eu achei que eu e o tal do Maurício éramos únicos, incomparáveis, diferentes de todos os outros caras, sujeitos realmente sui generis no coração bárbaro e sujo e perverso de Juliete. No duro, essa garota podia ministrar workshops às pessoas que querem quebrar um coração e não sabem como fazer.

– Você não pegou a essência da coisa, Santi – ela insiste. – Eu não tive as mesmas chances de experimentar tudo de quem se criou na rua. Fui criada com zelo excessivo, não tinha permissão pra nada, ir a uma festa ou pegar um resfriado. Depois me envolvi muito cedo com o Maurício, hoje eu vejo na época era o melhor meio para me libertar da tirania do meu pai, enfim, poder viver alguma coisa, ir além do nosso condomínio de luxo. Aposto que você não sabe como é isso, sentir... Ei, do quê você está rindo?
– Do quanto sou um ingênuo estúpido – respondo a ela, no meio de uma conflagração de risos impulsivos, reação essa que só demonstra o quão transtornado estou com o noticiário. Acho que vou sair daqui de ambulância.
– Por acaso você ouviu a parte onde eu disse que isso que aconteceu foi uma coisa positiva? – ela fala elevando o timbre, irritada notoriamente.

Risos. Risos. Risos.

– E que diferença isso faz? – sigo gargalhando de besta, até ela dar o fora, do mesmo jeito que entrou na minha história: chorando. E eu continuo lá, gozando o pseudo-êxtase ridículo de algumas risadas remanescentes, até dizer chega. Até dizer: agora é sério, parei. Até dizer: estou fora. Até dizer nunca mais.